Edson Silva de Lima

JÖRN RUSEN: ENSINO DE HISTÓRIA E NICHOS DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA, CONSCIÊNCIA HISTÓRICA DESVIANTE E/OU CULTURA HISTÓRICA



Não surpreende, quando no espírito de um povo que sofre, que quer sofrer de febre nervosa nacionalista e ambição política, passam nuvens e perturbações várias, pequenos acessos de imbecilidade.
Nietzsche

É sabido que o ensino de história como campo de pesquisa produtivo e “novo” tem se apresentado como menina dos olhos de algumas universidades do Brasil. Seja pelo seu ar de “descoberta” recente pelos historiadores, seja por atrair interesse de pesquisadores, já consagrados, para uma renovação em sua atuação enquanto pesquisador/professor. Em suma, o que queremos salientar aqui é que esse espaço vem sendo compositivo de uma arena de disputas. De um lado aqueles que já vinham se debruçando sobre esse objeto específico em programas de pós-graduação em educação e de outro os historiadores que perceberam a importância de compreender os mecanismos de ensino-aprendizagem de sua disciplina, tendo como condição para essa atuação, uma reflexão teórica e uma abordagem metodológica.
        
O trabalho exemplar de Wilian Carlos Cipriani Barom desenvolvido em sua pesquisa de mestrado [2012] no programa de pós-graduação em Educação da universidade de Ponta Grossa nos oferece um mapeamento interessante e bem completo da recepção de Jorn Rusen e suas teorias no Brasil. Vamos elencar alguns pontos que a nós parece ser centrais para compreender um pouco dessa aproximação com o pensamento alemão no campo do ensino, afinal não é novidade que o pensamento filosófico e sociológico alemão teve, por exemplo como ilustre anfitrião Capistrano de Abreu para citar um dos mais importantes expoentes da historiografia brasileira. Para tanto mobilizaremos o artigo A teoria da história de Jörn Rüsen no Brasil e seus principais comentadores [2015] de autoria do pesquisador supracitado, pois ele faz uma diminuta síntese de suas pesquisas que a nós será muito cara.
        
Wilian Barom fez uma abertura metafórica em seu artigo, muito bonita, dividindo em três partes sua embarcação imaginativa: “Ao longo do caminho serão os movimentos de originalidade, a curiosidade atenta e interpretação dos navegadores que vão nos garantir a segurança de trafegar e (re)conhecer as nossas águas” [BAROM, 2015, p. 224].
        
No entanto, o que nos interessa aqui está nesse último elemento: interpretes. Isso porque a condição última de compreender a recepção positiva e intensamente replicada das ideias de Rusen estariam no nosso ponto de vista ligada a maneira como sua teoria foi e tem sido apropriada, traduzida e defendida. A afirmação de condição plural da didática da história no Brasil, nos parece sintomática do que em outras palavras podemos chamar “limites da pluralidade”, uma vez que há uma hegemonia que circunscreve o campo quando referenciado por seus mobilizadores. No entanto, podemos observar essa pluralidade se colocarmos em primeiro plano as “relações de grupo, disputas de poder, potencialidade de diálogos, abertura (ou não) a críticas, influências mútuas, estabelecimento de hegemonias, controle de espaços políticos etc” [BAROM, 2015, p. 224].
        
É curiosa a divisão que Barom fez entre o conteúdo da teoria e o entendimento dos pesquisadores e mais entre o entendimento e a utilização prática na pesquisa segundo ele seria uma assimilação “entre o conteúdo da teoria e o entendimento do pesquisador e outro entre esse entendimento e a utilização prática em sua pesquisa” (BAROM, 2015, p. 225).

Nesse sentido há uma tentativa de construir uma provisória ideia do todo. Conteúdo, entendimento e prática seriam assim uma cadeia condicionante de organização do pensamento como produtor de razão reflexiva. Isso nos colocaria no espaço de relação entre o giz e o quadro “negro”, nem sempre assim objetivado. Em outras palavras no exercício pedagógico se desenvolveria uma relação com aqueles que sendo alumnus se tornariam estudantes, ou seja, esses sujeitos carregados de vida, de experiências distintas, de desejos e vontade.

O que estamos apontando aqui está ligado a necessidade das ideias copiosamente produzidas nos muros das universidades, não se encerrando nelas, estarem em diálogo com os espaços formais de educação básica. Precisamos evidenciar o anunciado sucesso de projetos como PIBID e mais recentemente o ProfHistória em rede nacional. O que se desenha aqui são questões que realocam o sujeito do pensar e o sujeito da ação. Na ordem do dia conteúdo, entendimento e prática se organizariam como organismo e/ou unidade.

A sociologia crítica da produção científica que Barom nos apresenta, permite ter uma cartografia real das contribuições de intelectuais brasileiros que tem dispensado tempo e vida na compreensão da reflexão pedagógico-histórica para o campo da educação e em específico do ensino de história.

Barom analisa as apropriações do pensamento ruseniano no Brasil a partir de produções acadêmicas que colocam em primeiro plano suas principais contribuições e as discussões em torno de sua teoria e, por fim, aplicabilidade. Veja bem, o recorte proposto pelo pesquisador nos permite verificar uma fatia importante dos grupos que vão ao encontro das teorias do alemão, isto é bastante substancial para o que pretendemos fazer no item 2 dessa pesquisa.

Segundo Wiliam Baron no ano de 2012, “quando levantados os trabalhos acadêmicos sob essa influência1 a partir de um recorte de 2001 a 2010, encontrou-se a totalidade de 75 artigos, 37 dissertações, 14 teses e 1 monografia” [BAROM, 2015, p. 225]. Em seguida ele nos oferece em porcentagem a análise dos dados recolhidos “Quando atentamos isoladamente para as teses, dissertações e monografias, registrou-se uma amostragem de 64,1% de produções realizadas nos programas graduação e pós-graduação em História, e 34% nos programas de pós- -graduação em Educação. Houve também uma dissertação realizada no programa de pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB)” [BAROM, 2015, p. 226].

Esses dados denotam um crescimento exponencial; se antes a hegemonia imperava nos programas de pós-graduação em Educação, com a “descoberta” dos historiadores e assim um olhar mais ambicioso em relação ao futuro dessa subárea do campo da história, fica evidente o investimento para que ela alcançasse um lugar de destaque no metiê historiográfico.

No entanto, surpreende ainda que abalada a liderança dos programas de educação, sua hegemonia é mantida quando quantificada em dados recolhidos em setembro de 2015 [BAROM, 2015, p. 226]. “Estendendo o recorte a 2015, temos os seguintes dados: 562 artigos, 75 dissertações, 28 teses e 2 monografias. Da mesma forma, atentando isoladamente às dissertações, teses e monografias podemos registrar 72,6% nos programas de graduação e pós-graduação em Educação (21 teses, 55 dissertações e 1 monografia), 26,4% de produções realizadas nos programas de graduação e pós-graduação em História (7 teses, 20 dissertações e 1 monografia), mais o trabalho produzido pela área de Relações Internacionais” [BAROM, 2015, p. 226].

Esses números apontam ainda para uma soberania dos programas de Educação em relação aos programas de história. Barom faz um mapa satisfatório quanto a nossa preocupação em apontar que as discussões em torno do tema ensino de história tem sido produzido com mais afinco fora do território do historiador. E portanto, com instrumentos do pensamento pedagógico e suas teorias:

Quando dividimos, instrumentalmente, todas as publicações em antes e depois de 2010”, salienta Wilian Baron, “podemos assinalar um crescimento de 66% nas produções acadêmicas, atentando ao significativo crescimento dos trabalhos realizados pelos programas de graduação e pós-graduação em educação. Dividindo essas publicações de teses, dissertações e monografias por universidade, o que nos apontaria geograficamente o impacto da teoria rüseniana, temos: UFPR (37), USP (15), UEPG (14), UNB (11), Unicamp (7), UEL (), UFPB (04), UFG (03), Ufop (3), UFSC (3), UFMG (1), UFRGS (1), UFRJ (1), UFSJ (1), Unesp (1) [BAROM, 2015, p. 226].

Considerando esses dados significativos podemos observar a insipiente produção do sudeste em relação ao Sul. A UFPR tem sido nesse sentido um centro de produção, divulgação e recepção das teorias de Jorn Rusen. Essa afirmação nos permite dar o próximo passo em direção a compreender a importância, justificação e utilização dessas teorias nas pesquisas sobre ensino de história ou educação histórica, em direção a categoria de consciência histórica, que é fundamental nessa pesquisa. Não podemos deixar de listar nomes significativos que tem empreendido considerável esforços em orientação e produção, os professores e professoras Ernesta Zamboni, Estevão Chaves de Rezende Martins, Luis Fernando Cerri, Luiz Sérgio Duarte da Silva, Kátia Maria Abud, Tânia Maria Figueiredo Braga Garcia, Marlene Rosa Cainelli e Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt [BAROM, 2015, p. 226].

É conhecida a clássica crítica de Nietzsche sobre o afastamento dos historiadores em relação a vida, a experiência cotidiana [NIETZSCHE, 2005], a partir disso, a primeira contribuição de Rusen, segundo os pensadores elencados, esta exatamente em propor essa reaproximação como uma tentativa de “enraizamento da história no cotidiano da vida prática”, portanto, sua relação com o mundo vivido, colocando também como produto histórico. Para Ronaldo Cardoso Alvez “o labor historiográfico deve ser norteado exatamente por essa relação intrínseca entre história e vida” [ALVEZ apud BAROM, 2015, p. 228]. O aspecto pedagógico da ciência histórica, apontado por Pedro Caldas [2008], como retomada do caráter pedagógico da história em seu sentido formativo. Segundo ele seria um ganho como forma de reinserir na reflexão historiográfica uma preocupação didática com intenção a orientar o conhecimento científico. Assim a história se apresentaria como ação reflexiva, afirma Wilson Souza, para o sentido do sujeito histórico [GOMES, 2012, p.180].

Do nosso ponto de vista é uma dimensão generalista que de alguma maneira traz outra forma de condicionamento do fazer histórico. No entanto, há aqui também uma tentativa de superar a redução dos estudos históricos a metodologia de pesquisa meramente. Rafael Saddi, nos diz que Rusen dá atenção especial as categorias de interesse e função que evidencia assim a linha tênue entre pensamento histórico relegado cientificamente a vida prática.

É preciso retomar Michel de Certeau para dizer que essas categorias são elementos centrais na operação historiográfica. De modo a possibilitar uma verticalização que aprofunda esse lugar que antes estava subordinada a objetividade científica.

Muitos historiadores se questionaram sobre a validade ou mesmo para que serviria a história. A resposta de Marc Bloch, no entanto, sempre traz um certo nível de consolo, bem como aproximação a cotidianidade do exercício historiográfico. Dizia ele, que não servindo para algo, pelo menos nos divertiria. Dessa forma a história estaria diretamente relacionada a trivialidade, a vida e a experiência do vivido. Por outro lado a resposta de Ronaldo Cardoso é ainda mais ousada: “a história seria um instrumento ideológico de autorreflexão pública que permita às pessoas e aos grupos construir identidade e se colocar autonomamente diante dos problemas de orientação temporal (im)postos pelo cotidiano” [BAROM, 2015, p. 228].

A matriz ruseniana aponta portanto que uma reflexão teórica qualitativa com foros de regulação metódica, retorna como orientação individual e de grupo para problemas cotidianos com orientação temporal. Saddi, entretanto, ressalta a importância dessa reflexão dos fundamentos mundanos na história. A teoria de Rusen portanto, teria como preocupação de fundo partir “Das angústias de orientação (individuais e coletivas de uma época) à metodologia científica da história, para então se apresentar singularmente em sua forma escrita, retornando à sociedade com a função de orientação” [BAROM, 2015, p. 229].

Nesse sentido o dialogo de Jorn Rusen com Hayden White é problemático. Talvez os historiadores ainda não tenham atentado para o prefácio de Metahistória. O retorno tautológico a natureza da narrativa historiográfica e o perigo da ficção está cada vez mais no campo do kitsch ou da ignorância dos estudos sobre a natureza da ficção e aproximação entre res factae e res ficta. Rusen acaba caindo na armadilha de historiadores preocupados ainda com o paradigma historicista de verdade.

Seus argumentos nesse sentido percorrem um caminho que tem a necessidade de “articulação da racionalidade metódica com o sentido, por meio da narrativa histórica” [ASSIS, 2010]. Pois bem, cabe trazer aqui um argumento whiteano para demonstrar que os historiadores continuam usando a tática fabiana para salvaguardar a cientificidade do conhecimento histórico.

O argumento seria que: “Os teóricos da historiografia geralmente concordam em que todas as narrativas históricas contêm um elemento de interpretação irredutível e inexpungível. O historiador deve interpretar a sua matéria a fim de construir o padrão que produzirá as imagens em que deve refletir-se a forma do processo histórico” [WHITE, 2014, p.65]. Portanto, fica claro que o historiador não tem acesso ao passado senão pela sua condição interpretativa e representacional. Em outras palavras é preciso perceber que essa imagem não é um enclausuramento, mas um grito de liberdade em relação a condição rigida de forma e conformidade.      Seria preciso levar em consideração essa sentença não é condicionante, portanto, leva em consideração a dimensão subjetiva e insegura de profissionais aficionados com a pragmática ou com a empiria. Hayden White continua seu argumento ainda dizendo: “(…) o registro histórico é ao mesmo tempo compacto demais e difuso demais. De um lado, sempre existem mais fatos registrados do que o historiador pode talvez incluir na sua representação narrativa de um dado segmento do processo histórico. E, assim, o historiador deve “interpretar” os seus dados, excluindo de seu relato certos fatos que sejam irrelevantes ao seu propósito narrativo” [WHITE, 2014, p.65]. Sinalizando as limitações da condição interpretativa dos fatos, Hayden White está dizendo que do corpus documental a seleção é fundamental não apenas como lugar de organização e organicidade, mas também como maneira de arranjar, ordenar e planificar a explicação. Em outras palavras a escrita da história necessita de uma organização narrativa; seja como condição de composição, seja como uma forma de nos limites da linguagem encontrar as encruzilhadas e os vínculos necessários a enunciação.

Entretanto, “no empenho de reconstruir o que aconteceu” num dado período da história, o historiador deve inevitavelmente incluir em sua narrativa um relato de algum acontecimento ou conjunto de acontecimentos que carecem dos fatos que poderiam permitir uma explicação plausível de sua ocorrência. E isto significa que o historiador precisa “interpretar” o seu material, preenchendo as lacunas das informações a partir de inferências ou de especulações. Uma narrativa histórica é, assim, forçosamente uma mistura de eventos explicados adequada e inadequadamente, uma congérie de fatos estabelecidos e inferidos, e ao mesmo tempo uma representação que é uma interpretação e uma interpretação que é tomada por uma explicação de todo o processo refletido na narrativa” [WHITE, 2014, p.65]. Essa explicação final é muito clara. Hayden White está afirmando a dupla face Janus, se por um lado o historiador empreende um relato que necessita dos fatos, do acontecimento de sua articulação documental, por outro lado também precisa de uma empresa especulativa que preenche os vazios, os espaços não ocupado por uma precisão radical. Mas que permite a criação narrativa sem se perder em drástica explicação descritiva, possibilitando assim que o historiador produza um texto historiográfico, inteligível e agradável ao mesmo tempo; sem necessidade inflexão e rigor excessivo.

Jörn Rüsen advoga por uma confecção de sentido que esteja em colaboração com a regulação metódica que retorna como orientação. A linguagem no seu ponto de vista seria central como mediadora e constituinte da narrativa histórica. Ele como outros historiadores contemporâneos ao admitir os limites e arbitrariedade da linguagem, dão um passo atrás na tentativa de preservar a razão como condição sine qua non de possibilidade de pensamento, claramente ancorada na autonomia do que é dado a conhecer, do que é possível conhecer como Kant procurou demonstrar em seu debate com os empiristas.

Ao que parece a linguagem, portanto, a retórica e a estética tem um lugar ainda secundário, senão limitado pela razão, segundo Rusen necessário a racionalidade metódica do sentido. Para ele a narrativa ganha sinal positivo desde que resguardada seu limite explicativo e epistemológico que estabeleceria uma relação entre narrativa histórica e realidade histórica.

A narrativa histórica teria uma definição bem delineada, de modo a conservar seu caráter específico de um realismo diverso do realismo literário, “o fato de as narrativas históricas rememorarem a experiência do passado por meio de representações da continuidade temporal ” alega Arthur Alfaix Assis, “– as quais ao mesmo tempo sustêm a formação de identidades no presente – confere à historiografia uma característica específica” [ASSIS, 2010].

A partir desta afirmação podemos perceber quanto que a preocupação está em salvaguardar o caráter científico da história. A narrativa histórica, portanto, explica, aclara, elucida, mas com sobriedade científica, com finalidade definida “articula passado-presente-futuro e colabora na identidade do sujeito presente” [BAROM, 2015, p. 230].

Nessa matriz Rogério Chaves assevera que a contribuição de Rusen esta nesse sentido em atribuir importância a mediação narrativa ou a narrativa por se limita a linguagem como mediação entre o fato e sua representação histórica. Sendo bastante taxativo Chaves declara: “a conexão entre a experiência humana do passado, extraída a partir da pesquisa, e as demandas por sentido requeridas pela vida humana do presente, somente se dá através da historiografia (produto intelectual narrativo construído por historiadores)” [CHAVES, 2009, p.174].

A relação método e sentido por meio da narrativa sofreria imposição da cientificidade no pensamento histórico, assim a narrativa apenas seria admitida desde que “ordenada, admitida de forma adequada e compatível com a cientificidade do conhecimento científico” [CHAVES, 2009, p.176].

 Nesse sentido ao que se apresenta a proposta de renovação de um projeto kantiano de esclarecimento, estaria no campo da mediação controlada entre a objetividade e a subjetividade. Um desafio que lançaria Jorn Rusen a articular história e vida prática, métodos de pesquisa e as técnicas narrativas.

Ao submeter a racionalidade ao tempo, Rusen atenta para o caráter constitutivo de uma cultura histórica (Razão histórica). Em outras palavras há aqui uma preocupação em localizar os indivíduos no tempo, produzindo uma mediação entre estrutura e intencionalidade; o conceito de cultura histórica nos levaria em direção ao conceito de consciência histórica. Para desenvolver esse conceito Rusen buscou a cotidianidade dos fundamentos do pensamento histórico.

A consciência histórica, nesse sentido, seria um “fenômeno do mundo vital”. Uma forma de consciência humana comum a todas as pessoas. A partir daqui se apresenta a primeira abertura que aponta para a reflexão que se virá na segunda seção desse texto. Em termos gerais, queremos refletir sobre a homogeneidade em que essa explicação do conceito de consciência histórica coloca os sujeitos históricos, bem sua pré disposição a localização de um sujeito autocentrado. Há aqui um paradoxo, para não dizer uma contradição. A experiência temporal também é subjetiva e, portanto, advogar por uma universalidade, não é apenas dar alguns passos atrás e voltar os olhos para o paradigma catersiano, como também deixar de colocar na pauta o fenômeno do sujeito fragmentado.

Jorn Rusen, afirma que o historiador mobiliza fontes e aplica métodos a elas a partir de um conjunto de informações do passado carregado de cotidianidade. Nos parece assim que sua preocupação está em estabelecer leis gerais que dêem conta da multiplicidade experiências humanas. Essa proposta no entanto, toma aparecia de renovação iluminista, como já apontamos nesse texto. Dessa maneira teríamos acesso a uma bagagem que no interior de memórias capitariamos ideias e informações originadas no cotidiano, bem como procedimentos de regulação metódica. Um possível retorno aos parâmetros da  natura naturans”, natureza criadora; e como o produto passivo desse processo, “natura naturata” natureza criada, em que haveria uma contemplação da natureza e não sua explicação ou algo que estaria no entremeio dessa condicionante.

Os conceitos de formação complementar e formação compensatória, derivam dessa dimensão supostamente cotidiana do pensamento, que operacionaliza a ação da cultura histórica sobre os sujeitos. “Uma cultura que colabora na formação das ideias históricas das pessoas. Um sentido dado pela cultura, o agir passado como direção imediatamente eficaz ao presente, que é interpretado pelo sujeito, conforme as suas carências e interesses” [RUSEN, 2001, p.77].

Assim, o sentido seria dado pela cultura, de modo que o agir passado como direção imediata eficaz ao presente interpretado pelo sujeito conforme suas carencias e interesses. “Desse modo, discutir a dialética entre sujeito e estrutura em Rüsen passa necessariamente pela articulação dos conceitos cultura histórica, formação histórica, tradição, crise e consciência histórica” [BAROM, 2015. p.232]. O paradoxo da questão seria portanto, que “é pela consciência histórica que se supera, ou até mesmo se reproduz, uma dada cultura histórica. Acreditamos aqui que a consciência histórica pode estar ou não atrelada a uma dada cultura histórica, em maior ou menor grau” [BAROM, 2015. p.232].

Wilian Barom indica assim certo grau de autonomia da consciência histórica dominante. Generosamente ele amplia o conceito, afirmando ser possível “pensar em nichos de consciência histórica, consciências históricas desviantes, ou uma cultura histórica que não seja unívoca ou homogênea, ou ainda, mesmo hegemônica, sujeita a contra-hegemonias” [BAROM, 2015. p.232]. Por outro lado ele aponta que a cultura histórica, das informações históricas presentes nas sociedades como realidade, em que as pessoas obrigatoriamente se relacionam, no processo de formação de suas paisagens de compreensão ou leitura de mundo.

Isso quer dizer que o conhecimento histórico estaria disponível no mundo como conhecimento científico e também como conhecimento não regulado. De maneira a causar uma dissolução entre ciência e senso comum, ao inserir a subjetividade no processo de reflexão sobre a experiência humana, portanto, do pensamento em dialética com a cultura. Seria, por conseguinte, uma defesa cientificista frente ao que Rusen considerou ataque pós-moderno ao método, assim “a contribuição de Rüsen”, nas palavras de Estevão de Rezende Martins, “seria articular, de modo integrado, as cinco fases da historização do tempo e do espaço humano: a experiência, a reflexão sobre a experiência, o pensamento histórico, a consciência histórica e a cultura histórica”  [MARTINS, 2012, p.68].

De acordo com essa contribuição Wilian Barom parafraseia Rusen, mostrando que sua afirmação de que a teoria da história seria a reflexão sobre o conhecimento história disporia de outros elementos fundamentais como “o cotidiano do historiador, seu tempo, sua cultura, passam a constituir a base natural da teoria da história” [RUSEN, 2001, p.25].

Segundo Baron as traduções das obras Razão Histórica (2001), Reconstrução do Passado (2007a) e História Viva (2007b), traduzidas por Estevão de Rezende Martins e Asta-Rose Alcaide no Brasil abriram o caminho para as discussões sobre a didática da história a partir do olhar alemão. No entanto, aparentemente seria essa a primeira reflexão em torno do tema, caso não levássemos em consideração a tradução pouco conhecida de A História na reflexão didática, de Klaus Bergmann, em 1990. Rafael Saddi vem fazendo essa “correção” em termos de creditar a essa leitura sua devida relevância. Mas também insere Jorn Rusen no conjunto de uma geração composta por Schörken, Bergmann, Pandel e Jeismann.
        
Considerações finais

Diante do que foi dito até agora com algumas ressalvas pontuais sombreando o caminho de algumas críticas ao pensador alemão, não há como não afirmar o seu lugar de privilégio nas pesquisas sobre ensino de história em especial as que estão preocupados com os temas da didática da história, aprendizado histórico como fenômeno social e a chamada educação histórica.

Assim sendo, tem-se a organização de um lugar específico que não isola Rusen de seus compatriotas, mas que o insere em uma paragem como parte de um projeto intelectual importante. O fato é que o banquete que os pesquisadores fazem com suas ideias, sem sombra de dúvidas, nos faz perceber a importância de seu pensamento que não deve ser ignorada, a didática da história recebeu assim um lugar especial no campo da história. Podemos então afirmar que até aqui que as principais contribuições de Jorn Rusen para os intelectuais brasileiros compreende “a consideração da formação do pensamento histórico comum, da cultura histórica, da inserção do historiador no tempo e no espaço histórico, da ciência como orientação para a vida, disposta igualmente na sociedade, amplia as fronteiras da disciplina Didática da História, de modo a melhor se compreender o fenômeno do pensamento histórico” [BAROM, 2015. p.233].

REFERÊNCIAS

Edson Silva de Lima é doutorando em História Social pela UNIRIO na linha de pesquisa Cultura, Poder e Representações, mestre pela mesma instituição na linha Patrimônio, Ensino e Historiografia. Tem especialização em Ensino de História pela UCAM e Coordena o grupo de pesquisa interinstitucional História & Linguagens.


BAROM, Wilian Carlos Cipriani. A teoria da história de Jörn Rüsen no Brasil e seus principais comentadores. Revista História Hoje, vol. 4, nº 8, 2015. Disponível em: <https://rhhj. anpuh.org/RHHJ/article/view/200/147>. Acesso em: 02/06/2018.

CALDAS, Pedro S. P. A arquitetura da teoria: o complemento da trilogia de Jörn Rüsen. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, v.5, n.1, 2008.

CHAVES DA SILVA, Rogério. A Dimensão Narrativa e a Didática da História em Jörn Rüsen. (Resenha de RÜSEN, Jörn. História Viva: Teoria da História III – formas e funções do conhecimento histórico). Opsis, Goiânia: UFG, v.9, 2009, p.174.

GOMES, Wilson de S. Aproximações de fronteiras: discussão sobre Teoria da História e Historiografia nas perspectivas de Rüsen e Droysen. Revista Expedições – Teoria da História & Historiografia, v.V, n.3, 2012. p.180.

NUSSBAUM, Martha Craven. Sem fins lucrativos: porque a democracia precisa das humanidades. Tradução: Santos, Fernando – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.

MARTINS, Estevão C. R. História: consciência, pensamento, cultura, ensino. Educar em Revista, v.42, 2012.p.68.

NIETZSCHE, Friedrich. II Consideração Intempestiva: sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida. In: SOBRINHO, Noéli Correia de Melo. Escritos sobre História. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.

WHITE, Hayden. A interpretação na história (1972-1973). In: Trópicos do Discurso: Ensaio sobre a Crítica da Cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. 2 ed. São Paulo, Editora da USP, 2014.


9 comentários:

  1. no texto podemos ver o autor tentar responder algumas contradições sobre o estudo da história e o pensamento histórico.alguns pontos citados me trouxeram dúvidas, se o historiador tem que ter uma boa interpretação para criar um pensamento histórico pq são outras disciplinas que vem ocupando esse lugar em pesquisar e entender a história.
    Rayara thayani de Sousa caxeta

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    2. Rayana, devo dizer que interpretar o passado na intenção de compreende lo não é exclusividade do historiador. No entanto, a disciplina tem suas particularidades como qualquer outras das humanidades. Veja bem, a história da historiografia não é puramente profissional, de maneira que toda sua produção em relação ao conhecimento histórico e plural, pelo menos desde a antiguidade. O historiador profissional que se firma no século XIX aparece como um estranho ao pensamento ocidental, e se preocupa em determinar a validade do pensamento histórico como possível. R. G. Collingwood (Meu objeto de doutorado) é bastante enfático no seu livro póstumo A ideia de história quando diz que comprovar a autenticidade epistemologica história e sua relacao com a filosofia, era fundamental para que o pensamento não fosse puramente abstrato e essencialista, advogava por uma historicidade do pensamento. E no entanto era ele filósofo de formação. Vale dizer que o que se fórmula aqui é um reflexão que traga para equação ruseana uma consciência que não se limite ao imanentismo de seus argumentos, ou a ratificação de seu caráter racionalista. Por outro lado, é preciso levar em consideração a tradição do próprio pensador, que não implicar isenta lo de certas questões, por exemplo quanto a consciência de classe.
      Dito isso, acredito que todo esforço interdisciplinar é fundamental para o pensamento histórico.
      De todo modo, não advogo que historiador tenha que ter boa interpretação, mas que não abra mão de instrumentos hermenêuticos em favor da explicação pura sob a saia do paradigma da verdade.

      Edson Silva de Lima

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    3. Prezado professor mestre Edson Silva de Lima,
      gostaria que o senhor explicasse um pouco sobre a questão da consciência de classe em Rüsen, à qual o senhor se refere, não sei se compreendi sua colocação. Em meus poucos estudos sobre a didática da história proposta por Rüsen, interpretei que se a consciência histórica proporciona aos sujeitos o máximo de autoconhecimento, e reforço identitário e orientação para a ação no presente, a consciência histórica, para o trabalhador, desempenha importante papel para a formação da consciência de classe desses trabalhadores.
      Grato,
      Leonardo Gallo Araujo Lima.

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    4. Leonardo, tudo bem. obrigado pela pergunta.
      Talvez não esteja bem desenvolvido nessas poucas linhas dispus para o evento. Explico. Minha questões sobre esse ponto se refere a Rusen não avançar em compreender a pluralidade social dos indivíduos, denotando um sujeito puramente abstrato. Concordo que a consciência histórica é fundamental para formação da consciência de classe, mas não uma consciência puramente abstrata, exige dos envolvidos um acordo coletivo, o autoconhecimento se daria portanto, em situação de deliberação coletiva. Isso quer dizer, por exemplo, que segundo Mauro Iasi após a falsa lineariedade que fez com que alguns triunfalistas da questão política militante percebesse na consciência de classe o locos de ascenso constante, agora desemboca em um pessimismo desmobilizador. E ainda, os “mitos modernos” do “fim das classes”, de um mundo “pós industrial” como possível solução final nos limites da democracia liberal burguesa conseguiria dentro de suas pressuposições econômicas de mercado orientar os sujeitos históricos que perceberam ou atravessaram a história de classe para uma razão imobilista.
      Para que a categoria de consciência de classe seja compreensível, seria preciso colocar em pauta a categoria de ideologia, que em Rusen, aparece como estratégia apenas. Mas é preciso acentuar que há uma condição autônoma nessas categorias que não permite com que ao atribuir sentido específico para determinado propósito ela se torne apenas complemento de outra categoria. Saliento aqui, portanto, seu caráter suplementar.
      Nesse jogo entre complemento e suplemento das categorias de consciência e ideologia o capital está em constante arbitragem, estipulando as regras de mobilidade pela via da manutenção de si mesmo. Em outras palavras a ordem do capital é injusta, desigual, fundada na exploração, na desumanização, e destrói qualquer capacidade da vida se expressar como vida sendo fácil entender porque as pessoas se antagonizam contra a exploração e a reificação. Se bem que há uma dificuldade aparente em compreender a dimensão passiva com que algumas teorias políticas educativas incorporam a dimensão de consciência, muitas vezes associando a um estado constante de construção identitária como um monadismo torpe e autocentrado, que não coloca no jogo a dimensão coletiva, se não como meio de constituição de uma ética particular que pouco tem a ver com uma ética moderna nos moldes dos racionalistas setecentistas e menos ainda com aquilo que o filósofo Zygmunt Bauman chamou de ética pós-moderna, do qual, segundo ele não aceita a possibilidade de converter valores morais em normas universais com tranquilidade e isenção.
      Ao fim e ao cabo, Rusen nos apresenta de modo muito instigante um sujeito cartesiano autocentrado, em que a relação com o mundo é pura mediação interna, deixando de lado a condição dialética do existentivo.

      Edson Silva de Lima

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  2. obrigada por elucidar minha dúvida.

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  3. Boa noite caro colega, seu artigo me deixou bastante intrigada em vários pontos, fazia já algum tempo que não lia os nomes de J. Rüsen e de H. White num mesmo referencial. Gostaria muito que você abordasse um pouco mais sobre o embate entre estes dois teóricos, pois, apesar de ter citado H. White e a lógica whiteana de análise do discurso da narrativa histórica como narrativa, fiquei ansiando por um pouco mais da sua análise em relação a este posicionamento, e a como você percebe esta discussão, principalmente se contrabalanceada com a ideia de narrativa proposta por J. Rüsen. Parabéns, mais uma vez pela abordagem do tema.
    Karoline Fin

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    2. Karoline, obrigado pela pergunta.
      Esse ponto realmente merece maior aprofundamento. Ao que parece esse embate estaria relacionado a maneira como ambos pensam a questão da narrativa. Se para White ela é uma condição intrínseca ao fazer historiográfico, em Rusen a narrativa é a face exterior da consciência histórica, é nela que elabora-se o sentido, o significado e a representação. Veja bem. Diferente de White, nele não há uma dimensão estética, mas explicativa. A narrativa é interior ao indivíduo por ser ela uma forma de organização da consciência histórica, quando para White ela mais que isso. Ela compõe o que ele chamou de poética da história, carregada de instrumentos tropologicos que anunciam diversas camadas de consciência que colaboram na exposição historiográfica.
      Me intriga que a leitura de White tem uma dimensão política aparente, quando a de Rusen não chega a ser tangenciada. Está sempre em uma forma de abstração que flerta com o realismo, mas ao mesmo tempo foge dele. Que e surpreendente para um pensador que procurou a renovação das matrizes racionalistas.
      Penso que a dimensão narrativa de ambos historiadores tem uma ansia teorica que muito me agrada. Não podemos esquecer que História Viva, foi uma resposta de Rusen ao Metahistoria do White, advogando sobretudo pela particularidade metodologia da história enquanto campo do conhecimento. O debate e mais profundo em uma tradição alemã que compreende a dimensão ética da estética com fundamental para vida e portanto, para compreensão do homem como ser em media res e, portanto, em relação.
      Seria necessário desenvolver uma discussão entre esses autores no que tange a estética e a ética, em Rusen com profundas raízes em Kant, Schiller e Hegel, e em White na sua abordagem via Northrop Fry, Foucault, Barthes e Derrida, o que ele chamou de críticos estruturalistas.
      Veja bem, a demarcação teórica não é tão dispare, embora Rusen recorra a tradição e White ao estruturalismo, ambos tem como fundamental as dimensões manifestas do trabalho histórico, qual seja: epistemológicas, estéticas e morais. Esse último mais vivo em White.

      Edson Silva de Lima

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